domingo, 3 de abril de 2011

O Haver

       Dias chuvosos com um semi-frio me deixam meio Bossa Nova. Por isso venho, através desta, compartilhar a minha catarse poética. E, por falar em restos, resta apenas esse medo incontrolável de que a segunda-feira bata à porta assim, tão rapidamente. Resta esse aperto no peito, essa angústia diante dos círculos viciosos que a vida nos obriga a trilhar. Resta as pequenas esperanças diárias de que, ao final das quarenta e quatro horas de trabalho semanais, me encontrarei novamente. Resta essa vontade de ir embora, de mudar a alma de lugar e encontrar um porto, ainda que Alegre. Resta esses pequenos medos de ir adiante, de tocar, de sentir. Resta o medo de encarar os fantasmas interiores. Resta apenas a certeza do poço de incertezas que está logo à frente. Resta esses fragmentos de humanidade, moldando-se a cada dia. Resta essas dores estomacais, essa ansiedade que me é característica. Resta essa cabeça pensante, esse ar de constante agonia e desconserto. Resta um sentimento sem nome, pulsante. Resta esse corpo magro, franzino, procurando seus restos espalhados, a fim de, pouco a pouco, fazer uma espécie de reconstrução diária do todo.

O Haver
Vinicius de Moraes

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Botões

Eu sempre acreditei na máxima Nietzschiana sobre a necessidade de ter dentro de si um caos, para que uma estrela cintilante possa vir à luz. As pessoas efusivas sempre me causaram certo receio. Nunca admiti - talvez por egoísmo ou por uma pitada de inveja - que elas sorrissem todo o tempo. O que me faz lembrar ,com saudades, de um amigo que sempre me diz o seguinte: "Aquele que é feliz o tempo todo, pra mim, tem olhos de botão." Quem assistiu Coraline com certeza entende o que ele quer dizer. Os botões, pregados na face de forma artificial, anulam toda a mágica capacidade de enxergar que olhos possuem. É muito mais senso de humanidade, carregado de alma, do que uma mera constatação fisiológica. Pode até parecer pessimismo niilista carregado de sentimentos suicídas, mas não é. Talvez seja só a certeza de que esse "mundo" é muito pequeno, tão pequeno que tudo o que há nele possui denominações, nomenclaturas específicas e por aí vai. Penso que dar nome às coisas é somente uma forma de causar a falsa sensação de segurança. Das pequenas delimitações surgem as instituções, e delas principiam as regras. E até onde eu sei, ordem e progresso sempre foram boas premissas pra quem tem botões no lugar de olhos. Difícil é entender qual a ordem que propaga um progresso baseado na eterna satisfação, sorrisos e shopping center.
Fecho esse texto sem fundamentos quaisquer com o seguinte trecho:
“Gatos não tem nomes… Vocês pessoas têm nomes. Isso é porque vocês não sabem quem vocês são. Nós sabemos quem somos, portanto não precisamos de nomes”. [Gato Preto, Coraline]

terça-feira, 25 de janeiro de 2011